Reportagem da BBC Brasil destaca trabalhadores rurais do Piauí que se isolaram para proteger cidade do coronavírus

Duas vezes por ano, dezenas de homens saem da pequena Aroazes, sertão do Piauí, para trabalhar em fazendas de milho no Centro-Oeste e Sudeste do Brasil.

De dois a três meses depois, eles voltam. A chegada dos grupos em ônibus normalmente é acompanhada com a ansiedade dos familiares que permaneceram na cidade de menos de 6 mil habitantes.

Mas, neste ano, o desembarque foi diferente: sem conversas, sem abraços e sem poder matar a saudade de casa.

Preocupados com a pandemia do novo coronavírus e num esforço para evitar a chegada da doença à cidade, dezenas desses trabalhadores rurais resolveram se isolar da comunidade numa quarentena voluntária.

“A gente sabe que a cidade não tem estrutura se a doença chegar, então para nossa proteção, da família e da comunidade, resolvemos ficar longe”, conta Antônio José da Silva, 34 anos, que passou sete dias no começo de abril dormindo numa sala da escola municipal local com outros 13 colegas.

Sem hospital equipado, muito menos UTIs ou respiradores para tratar eventuais pacientes com a covid-19, Aroazes é uma entre tantas cidades pobres do interior do Brasil que veem com aflição o avanço da pandemia que já deixou mais de 25 mil mortos no Brasil.

Nesta segunda-feira (25/05), o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, alertou que o efeito da pandemia em cidades do interior “ainda está por vir”, em uma videoconferência da Fundação Oswaldo Cruz.

“As UTIs do Estado já estão superlotadas e aqui não temos como cuidar de pacientes graves. Por isso, temos que evitar o máximo que a doença se espalhe por aqui”, conta a secretária de Saúde de Aroazes, Thaisa Veloso Bonfim.

Nos dados divulgados pelo governo do Piauí, Aroazes tem um caso confirmado. Segundo a Secretaria de Saúde do município, trata-se de um médico morador de Teresina, a capital do Piauí, que faz atendimento semanal em Aroazes. Ele entrou na estatística de profissionais de saúde piauienses infectados e, por isso, ficou registrado como caso na cidade.

Portanto, atualmente nenhum morador da cidade estaria com a doença. Dois casos suspeitos são investigados, após os primeiros exames apontarem resultado negativo.

Os municípios vizinhos a Aroazes têm casos de covid-19: Elesbão Veloso (18), Valença do Piauí (4) e Pimenteiras (7).

Trabalhadores em quarentena

Foto: Divulgação/Secretaria de Saúde de Aroazes

Foi Antônio José da Silva que teve a ideia de propor à prefeitura um isolamento dos trabalhadores rurais que estão voltando a Aroazes em meio à pandemia.

Ele passou quase 2 meses trabalhando em campos de milho numa fazenda de Catalão, Goiás. É a chamada “safra de inverno”. Em novembro, voltam para a “safra de verão”.

 pandemia, Antônio resolveu solicitar a estrutura para a chegada do ônibus com os trabalhadores vindos de Catalão, cidade que registrava 15 casos de coronavírus na quarta-feira.

“Lá, a gente teve contato com todo tipo de gente, não dava pra saber se estava ou não infectado.”

Como muitos dos trabalhadores não tinham como se isolar em suas casas pequenas e com poucos cômodos, a solução foi se abrigar em uma escola municipal preparada pelo município.

A primeira turma, da qual Antônio faz parte, permaneceu no local por sete dias, com contato diário com profissionais de saúde que iam medir a temperatura. Para passar o tempo, jogos de damas, baralho e dominó.

A segunda turma, com 16 trabalhadores, chegou a Aroazes na quarta-feira, 20, vinda de uma fazenda de milho de Montividiu, Goiás.

Eloy Vieira, de 49 anos, conta que se preocupava com a volta para casa desde início do pandemia. “Ficar isolado foi a melhor opção. A vontade de encontrar a família é grande, mas quem tem amor pelos familiares não vai pra casa”, contou.

O piauiense passou 75 dias na cidade goiana que, na segunda, 25, registrava apenas um caso. “Se uma pessoa só pegar a doença numa cidade pequena como a nossa, é capaz de alcançar muita gente”, justifica.

Segundo a secretária de Saúde de Aroazes, mesmo trabalhadores que não voltam em grupos estão solicitando apoio da prefeitura para o isolamento. Eles são alocados em hotéis ou em outras salas da escola.

Depois de sete dias, os trabalhadores sem sintomas completam mais sete dias de isolamento em suas casas, monitorados por profissionais de saúde. Outros grupos de trabalhadores migrantes devem chegar nas próximas semana e todos serão convidados ao isolamento.

Barreiras sanitárias

Foto: Divulgação/Prefeitura de Aroazes

Diante da fragilidade do sistema de saúde não só de Aroazes, mas de todos os municípios vizinhos, a covid-19 virou foco de atenção total, mesmo sem o registro de tantos casos.

Os leitos de UTI mais próximos do município ficam na cidade de Picos, a 141 quilômetros. A capital, Teresina, está a 228 quilômetros.

Além da quarentena voluntária dos trabalhadores, as pessoas que entram em Aroazes diariamente têm temperatura monitorada, e os carros são higienizados.

Profissionais de saúde também fazem plantão em “tendas sanitárias” localizadas na porta dos poucos mercados, farmácias e bancos que estão abertos. Eles só permitem a entrada com máscara e limpam as cadeiras colocadas em fila quando alguém se levanta.

Totens com álcool em gel que são ativados com o pé para evitar contaminação também foram espalhados. As ruas estão sendo pulverizadas a cada dois dias, principalmente em pontos de grande movimento.

Apesar do esforço, profissionais de saúde do município e moradores dizem que é “questão de tempo” que a doença chegue à cidade. “Mas a gente vai fazendo nossa parte”, concluiu Antônio José da Silva.

Fonte: BBC